em catadupa

Imagem: Hemeroteca Municipal de Lisboa

A memória pregou-me uma partida. Já é hábito, acho eu, depois de algum tempo as lembranças atropelarem-se e surgirem sem aviso deflagradas pela mais pequena coisa.

Esta não foi pequena decerto.

... De repente vi-me no lugar da janela de um comboio da CP prestes a entrar no túnel do Rossio. Estava em 1988, a hora rondaria as oito da manhã e já há algum tempo ouvia um burburinho. Concentrada na leitura só levantei os olhos perto da estação de Campolide estranhando a luz da janela. O comboio parou e de repente senti um aperto. Via-se fumo e pouco mais. Pasme-se que ninguém poderia saber o que se estava a passar se não trouxesse um rádio de pilhas e quem ia entrando na carruagem não vinha, ao que parecia, com vontade de partilhar as informações que poderia ter ouvido a acompanhar a bica matinal... Lisboa estava a arder. Só o soube depois quando cheguei à estação. Não me recordo de muito do percurso que fiz até à Rua Rosa Araújo nem do regresso a casa na Amadora ao final do dia. Sei que foi um dia complicado, muito fumo, muita preocupação sobre o alastramento mas até ali ao Marquês... diziam que não ia. Terminou o dia de trabalho, as informações recebidas da rádio pirata onde eu colaborava na Amadora também iam chegando e na TV a informação desfiava o desalento das chamas do coração da capital.

A partida que a memória me pregou tem a ver com o jornal que revi hoje - o Diário Popular. O meu pai era assinante deste jornal. Lembro do jornal dobrado em três por forma a fazer um quase laço e do som que ele fazia ao ser atirado contra o estore de madeira do meu quarto do segundo andar a partir do ardina de bicicleta do meio da rua. Lembro disto e de repente em catadupa recordo o som do apito da fábrica das gabardinas, mesmo ao lado da minha casa, que apitava às oito da matina e às seis da tarde a marcar o limite do trabalho; do som do amolador de tesouras que, dizia-se, estava a "chamar chuva"; do som da campainha da bicicleta do padeira que percorria as ruas todas da Amadora com um cesto de pão em verga que quase tapava a roda de trás.

Lembro também do concurso 'descubra as diferenças' do Diário Popular. Era necessário assinalar as sete diferenças, recortar e colar numa caderneta. Com a caderneta preenchida (sem falhar um desenho ou uma diferença!!!) enviava-se para a redacção do jornal e era sorteado um prémio. Depois, era continuar a comprar o jornal à espera do dia em que vinha anunciado o nome do vencedor. No dia em que isso acontecia, ouvia o meu pai "Já estava à espera... não tenho sorte nenhuma! Nunca mais envio nada!". No ano seguinte recomeçávamos...

A Fábrica das Gabardines já não existe, o amolador já não é o mesmo mas ainda passa de ano ano e o padeiro reformou-se, homenageado pelo município pelos longos anos de tradição mantida na cidade da Amadora...

É... a memória tem destas coisas...




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