Histórias dos móveis que passam e de nós que passamos com eles
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Lembro ali naquele canto uma escrivaninha com traves que se puxavam lateralmente, a suportar a base de escrita. Ao lado repousava fragilmente uma mesinha em meia lua com 4 pernas altas encostada a uma cama com a cabeceira oval. Curiosamente, do roupeiro não tenho memória, mas recordo bem as flores de todas as cores com pinceladas certeiras a compor os ramos que se espalhavam pelas peças brancas. Se tivesse sido rapaz, seria provavelmente azul, mas as pinceladas encheriam todas as peças de igual modo.
Não sei quem escolheu o mobiliário nem qual o motivo daquela origem regional, porque não temos raízes no Alentejo. Mas sei quem decidiu pôr fim ao reinado dos ramalhetes e trocar a madeira maciça branca por móveis de contraplacado. Sei que me vou arrepender sempre. A minha cama passou a sair de dentro de um móvel e desdobrar-se todas as noites. Teve uma existência curta porque mesmo aos 15 anos as minhas costas começaram a ressentir-se, já para não falar dos lençóis que se prendiam e rompiam nas molas. Passei então para uma cama de MDF que era contraplacado na mesma… mas mais compacto e com ar de mogno - a folha por fora ajudava à ilusão. Por baixo uma gaveta com outro colchão.
As estantes comportavam uma infinidade de livros, na sua maioria compras por catálogo. Primeiro, eram livros tamanho familiar das Selecções do Reader’s Digest, depois livros pequenos do Círculo de Leitores. Os primeiros com promessas de prémios que nunca vieram e os segundos com a ilusão de um desconto e eram (ainda hoje persistem por aí) subscrições infindáveis. Despertei para a leitura cedo e comecei a ocupar as prateleiras com livros que efetivamente lia e algumas das colecções que vieram depois já obedeciam a algum critério. Havia ali também um tipo de compromisso - eu escolhia com a promessa de ler e os meus pais compravam um livro por mês… hoje tal contenção é, para alguns incompreensível.
Essa cama acabei por a dar duas décadas depois, era um dois-em-um - cama e sofá, a isso obrigava o escasso espaço da casa se eu queria receber amigas, porque “num quarto não!”. Os livros com lombada dourada e vermelha deram-me a conhecer alguns clássicos, entre outros, Tosltoi. As minhas boas notas na escola valiam-me a recompensa adicional de uma selecção da Disney por mês (pela minha mãe à revelia do meu pai ou então não havia livro do CL naquele trimestre.
Com o sentimento de me sentir deslocada e posta de lado nas brincadeiras de rua dessa altura, ainda hoje julgo que por ser gorda, foi assim que empurrei os dias até aos 23 anos. Fiz as pazes com o contraplacado dez anos mais tarde já de volta à cidade da Amadora quando comprei estantes para o quarto, exíguo, da minha filha e para o meu escritório. Todos esses móveis existem até hoje, mas são resistentes. Isto digo eu para me convencer… até porque andam comigo nas minhas mudanças de casa há uns anos, mas são contraplacado! Têm outro nome, um ar mais 'madeira’ mas nem por isso deixam de ser contraplacado! Nem são de madeira estes que eu hoje vejo aqui. Penso que um destes dias aquelas prateleiras cairíam se não estivessem tão apertadas com livros e sem espaço para onde cair.
As pazes com o contraplacado não se estenderam, até ver, às mesas. Hoje na minha sala repousa uma mesa em segunda mão acompanhada de quatro cadeiras (já com bicheza) também em segunda mão ('segunda' é forma de dizer... deve ir na quinta vida). Ah... como me arrependo de ter entregue um ramo de flores pintadas à mão e ter recebido contraplacado com portas e um estrado com molas espetadas... Onde andará a minha escrivaninha?!?
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